segunda-feira, 9 de maio de 2011

Malditos bolinhos de chuva



 
Ele me deu um sorriso meio de lado. Não me lembro se era para o lado esquerdo ou direito, mas sei que não foi no meio (que pena). Ele me deu também um olhado, eu juro que não foi achado, ele me deu mesmo, me deu que eu sei. Eu sei.
Da minha infância eu me lembro muito pouco, mas me questiono se não lembro mais da minha infância do que as coisas que me acontecem hoje em dia. Será?
Todo dia era assim. O despertador tocava, tocava, tocava, eu continuava deitada, mas não por preguiça, mas de tão boba que eu ficava. Lembrando dele, pensando nele - como você é lindo – eu repetia na esperança de dizer um dia isso a ele. Defronte do espelho eu via a felicidade sorrindo para mim e pensava: É claro que vou te encontrar!  Minha mãe logo vinha certificar se eu estava acordada, pedia uma escova e fazia trancinhas no meu cabelo. Eu descia as escadas e tomava café e quando tinha bolinhos de chuva... Ah, quando tinha bolinhos de chuva eu era a pessoa mais confiante do mundo e geralmente era o dia em que eu sorria para ele.
Essa história que conto hoje aconteceu em um desses dias, o dia em que tinha bolinhos de chuva (malditos!). O dia estava lindo, grande e forte. Eu estava com o uniforme que eu mais gostava a saia xadrez de prega e meus sapatos marrom-claser e, é claro, com duas trancinhas, uma de cada lado. As meninas da minha sala não gostavam de mim, eu também, sinceramente, não gostava de mim (nem delas). Elas não gostavam do jeito que eu me vestia e falava, e só depois de um tempo que eu descobri o motivo. Bom, nesse dia eu cheguei mais cedo, e me sentei no meio da fila, perto de onde ele sentava. Não havia ninguém na sala e pela primeira vez eu me senti à vontade naquele lugar e pude olhar em volta e perceber tudo. O quadro estava um pouco velho e tinha marcas de fungos, no lado esquerdo tinha um mural com as atividades, do lado direito, ao pé do quadro, havia uma cadeira onde pousava o mais temível de todos os medos da face da terra: o chapéu de burro.
Naquela manhã tinha aula de leitura e eu odiava. Odiava com todas as minhas forças, mas eu estava tão feliz que aquela tensão havia passado (momentaneamente). Meus colegas não demoraram a chegar, não os observei muito, mas quando ele entrou... Ah, quando ele entrou, foi impossível não reparar. Meu coração acelerou, meu rosto ficou vermelho eu contrai os lábios e então tomei coragem e fixei meus olhos nos dele. Ele olhou para mim e sorriu, o sorriso maior do mundo e para mim foi quase um beijo. E fiquei assim, sorrindo internamente, por uns quinze minutos, não vi professora, não vi os colegas, não vi nada além do lápis e a carteira. Comecei a desenhá-lo, desenhei primeiro o cabelo, era a parte que eu mais gostava dele, era grande, liso. Depois desenhei seus lábios, não que eu os quisesse beijar, mas eram lindos e parecia ter textura de uva sem caroços porque uva com caroços é uma tristeza. Em seguida fiz uma bolinha bem pequena que era o seu nariz, é claro que não era lá o nariz mais lindo do mundo (era enorme). E por fim desenhei seus olhos azuis.
 O que vem a acontecer agora foi muito rápido, só senti meu lápis sendo arrancado de mim de forma muito bruta, depois meus bracinhos apertados e uma dor terrível nas costas.
- Que diabos esta fazendo?! – berrou a professora cuspindo na minha cara. Diabos? Pensei em parar para questionar o que significava aquela palavra, mas eu já estava quase ajoelhada sem saber o que fazer, sem saber o que sentir, sem saber literalmente o que era vergonha.
- De-des-culpa, pro-pro-profe... – e o resto não saiu. O riso na sala foi unânime e só me restou uma dor que esmagava minha garganta, uma dor que só quem é gago entende. Eu nunca soube por que eu falava assim, meu pai dizia que era o charme que Deus me deu e que as crianças que falavam assim eram protegidas pelos anjos, mas eu não sabia que as pessoas não pensavam assim. Fiquei o resto da aula sentada do lado direito do quadro, com o chapéu na cabeça, eu queria muito que meu pai estivesse ali para explicar para todos que aquilo era meu chame e que eu seria protegida para sempre pelos anjos.

14 comentários:

  1. parabéns!! prima, o que eu mais gostei foi o modo como você passou por várias sensações, do humor inocente à beleza, da nostalgia ao primeiro amor, e de tudo isso à dor humilhante. também estou vendo que suas frases estão diferentes, construídas com mais estilo e significados. estarei por aqui! beijos

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  2. Oi querida,

    Lindo texto...
    O mundo é terrível quando a gente é criança....rs
    Mas passar por tudo e saber que sobreviveu e que se fortaleceu é maravilhoso...

    Beijos

    Ani

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  3. as dores das crianças são as maiores do mundo.

    E que professora heim? deu raiva dela rsrs

    Linda crônica

    Beijos!

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  4. Que lindo Lara. Que lindo mesmo!
    A forma como a menina conta a história é extremamente tocante.
    Parabéns meu bem. *-*

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  5. Sofrimento infantil é a coisa mais tragicômica que já vi... Parabéns, belo texto!

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  6. Muito bom filha!
    Pode ter certeza que os anjos sempre estarão ao seu lado.

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  7. Amei seu texto. As crianças são muito más ): E as professoras, nem se fale... Mas acho que é meio involuntário né.
    Gostei do blog.
    E ah, obrigada por comentar e seguir o meu.

    Beijo.

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  8. obrigado palas visitas, pelas palavras elogiosas também!

    obrigado mesmo!

    volte sempre, mesmo.

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  9. Boa historia, gostei mesmo. Mas ainda assim, acho que as marcas que adquirimos hoje em dia são piores que as da infancia... Ah, se eu pudesse voltar no tempo.

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  10. O pior de tudo é que a criança nunca esquece, beijo Lisette.

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  11. Simplesmente encantador!
    Ai crianças... existe ser mais inteligente no mundo?
    Seguindo õ/

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  12. Muito fofo seu texto,o pai da criança tinha mesmo que estar lá e explicar que era o seu charme dela =/

    Muito fofo seu blog,obrigada pela visita lá no meu o/

    Beijos

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  13. Depois de uma década tem uma aluna lendo sua tese e sua atenção é voltada a uma crônica. Me deparo com essas lindas palavras me representando aqui e lá, e já confesso que estou apaixonada pelos seus escritos.
    "[...] meu pai dizia que era o charme que Deus me deu e que as crianças que falavam assim eram protegidas pelos anjos"

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"quanto menor a casinha mais sincero o bom dia" (: